Igreja 1: Autoria: Rosa Ramos, 1980. Acervo de D. Minita. Queimadas Ba
Igreja 2: Igreja de Santo Antônio. Queimadas-Ba. Foto: Ariene Góes – Queimadas-Ba
Com a devida autorização da autora, Ariene Pinto Góes Matos, compartilho na íntegra seu Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado ao curso de Licenciatura em História como requisito para obtenção do título de licenciada, sob a orientação da Professora Suzana Severs.
Além de ressaltar a qualidade e a profundidade deste trabalho acadêmico, publico-o com o objetivo de dar visibilidade a uma narrativa singular e riquíssima do nosso folclore. Trata-se do inusitado julgamento de um santo no sertão da Bahia — um episódio carregado de simbolismo, devoção popular e sabedoria popular — que eternizou a marcante frase: “Que a justiça de Água Fria te condene!”
Este relato é uma verdadeira joia da cultura brasileira, que revela como fé, justiça e tradição popular se entrelaçam no imaginário do nosso povo. Ao valorizar histórias como essa, enaltecemos não apenas o trabalho da autora, mas também a riqueza do folclore nacional.
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Licenciatura em História para obtenção do título de licenciada, sob a orientação da Professora Suzana Severs.
Resumo
Este artigo conta a história do julgamento e condenação da imagem de Santo Antônio das Queimadas a qual foi responsabilizada por um assassinato na região de Queimadas em razão de ter recebido toda a herança de uma devota, proprietária desta imagem e, dentre ela estar um escravo, autor do crime. A legislação de final do século XVIII e início do XIX, quando este episódio parece se desenvolver, atribui responsabilidade de crimes cometidos por escravos a seus donos. Sendo assim, a imagem do santo foi obrigada a pagar por um crime e condenado à perda dos seus bens para custear as despesas do processo. Por ausência de comprovação do julgamento, esta história faz parte do imaginário coletivo de Queimadas sendo responsável, algumas vezes, pelos infortúnios que ocorrem no município. E é este aspecto que apuramos neste trabalho.
Palavras-chave: Religiosidade popular; Santo Antônio; Imaginário, Sertão baiano
Introdução
Este é um trabalho de cunho descritivo que se preocupou em levantar informações para contar a história do julgamento civil de Santo Antônio em Queimadas, Bahia, ocorrido em data incerta, entre o final do século XVIII ou o início do século XIX.
Queimadas, cidade do sertão baiano, foi palco de um episódio curioso. O juiz da comarca de Água Fria teria submetido à imagem de Santo Antônio das Queimadas a um julgamento civil, para responder por um crime cometido por um dos seus escravos, baseado na lei imperial que responsabilizava o senhor de escravos por quaisquer delitos e danos causados por eles. Santo Antônio era dono de terras, gados e escravos que lhes tinham sido doado por Dona Maria Isabel Guedes de Brito. Depois do julgamento a imagem desapareceu sem deixar vestígios, o mesmo aconteceu com o processo criminal.
Como foi impossível encontrar o processo do julgamento, história que contamos no corpo deste artigo, optamos por levantar a história do julgamento no imaginário da população, nos dias de hoje. Posto que encontramos em algumas falas a idéia de regresso e decadência da cidade ligado a este fato.
Para ajudar em nossa reflexão utilizamos como referencial teórico Jean-Jacques Wunenburger sobre imaginário e os escritos sobre religiosidade de Luiz Mott. Metodologicamente, para dar conta da pesquisa tão fragmentada, lançamos mão das entrevistas nos moldes da história oral proposta por José Carlos Sebe Bom Meihy, ainda que não classifiquemos este artigo como um trabalho de história oral propriamente dito, utilizamos as entrevistas apenas como um recurso complementar dos textos mais estruturados. Optamos por não identificar as pessoas entrevistadas para preservar a sua identidade.
1- Santo Antônio no Brasil
Por arte de umas leis ou do Demônio levaram a imagem para os tribunais, condenaram no júri a Santo Antônio que ali mesmo perdeu os cabedais.
Perdeu tudo o que tinha de uma vez: terras, escravos, roças e boiadas deixaram pobre o insigne português.
O caso fez escândalo no céu, porque foi Santo Antônio das Queimadas o único santo que também foi réu… (Nonato Marques)
Um dos traços marcantes da espiritualidade dos católicos sempre foi à devoção aos santos, tendo uma relação de adulação e rituais. Os santos têm um papel essencial na vida religiosa, tanto para resolver problemas mundanos quanto espirituais. Os católicos se valem de promessas e novenas aos santos a fim de realizar seus pedidos como um mercado de troca.
A concepção de Santo é explicitada por Luiz Mott quando diz que:
Santo é que se adula… diz um ditado antigo repetido na Bahia de todos os Santos. De fato, na religiosidade popular do Brasil de antanho, a intimidade dos devotos vis-à-vis certos santos e oragos percorria um continuum de amor e ódio, que incluía louvores, adulação, rituais propiciatórios, intimidação e até agressão física explicita. 1
Dentro do rol dos santos o lusitano Santo Antônio é o campeão da devoção popular. Dedicou toda a sua vida aos ensinamentos de Deus, conhecedor e praticante dos ensinamentos da Bíblia Sagrada recebeu o título de Doutor da Igreja2. Um grande pregador dos evangelhos e apoiado por uma popularidade que sempre crescia de época em época, Santo Antonio foi canonizado em apenas um ano após a sua morte (1232).
1 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA. Laura de Melo; NOVAIS. Fernando (orgs). História da Vida Privada no Brasil. p.184.
Santo Antônio é conhecido como Santo Antônio de Lisboa e também como Santo Antonio de Pádua, em razão de ser o patrono de Portugal, por ter nascido na capital, Lisboa (1195), e de Pádua (Itália), porque foi lá que passou dez anos evangelizando até sua morte, 13 de junho de 1231, data que se tornou celebrativa de sua memória e devoção. Desde então a cada 13 de junho, fiéis o celebram com trezenas e procissões lembrando seus feitos em vida e também os milagres realizados por ele depois de sua morte.
Santo Antônio foi uns dos santos trazidos para o Brasil pelos portugueses, os quais eram devotos fervorosos do santo franciscano, tinham um culto com sentido patriótico. Eles determinaram Santo Antônio como o padroeiro da Bahia, sendo que ele já era patrono de Portugal.
Existem no Brasil diversas cidades que têm igrejas ou capelas consagradas a este santo. E muitas igrejas que não são consagradas, possuem sua imagem em um dos altares laterais. Além disso, muitos devotos têm em sua própria casa a imagem de Santo Antônio, expressando a influência portuguesa aos brasileiros na veneração ao santo franciscano.
Na religiosidade popular brasileira Santo Antônio foi e continua sendo um dos santos mais requisitado pelos fiéis. Ele é bastante procurado para resolver problemas conjugais – o “santo casamenteiro”. Mas nem sempre foi assim, na época colonial ele era procurado para solucionar diversos problemas dos seus devotos, desde a cura de uma doença a achar coisas perdidas e principalmente ele era solicitado como um colaborador dos senhores na captura de negros fujões.
Várias torturas eram aplicadas a Santo Antônio pelos fiéis – colocar pedra sobre sua imagem, retirar o menino Jesus de seus braços, colocá-lo de cabeça pra baixo, arrancar- lhe o esplendor – com o objetivo de realizar seus pedidos, desde a intercessões em aproximações amorosas e enlaces conjugais, como hoje ainda acontece e também para recuperar os escravos fugitivos e encontrar coisas perdidas.
Em um registro do século XIX, de Thomas Ewbank, viajante inglês há o relato de uma senhora que confessa que sua mãe realizava torturas a Santo Antônio a fim de localizar seu escravo fugido. Dando várias receitas de como castigá-lo para alcançar suas solicitações, as quais foram ensinadas por sua própria mãe. Ela afirmava que, ao torturar a imagem, acelerava o atendimento do pedido e que o santo, por ter desejado em vida o sacramento do martírio, não se importaria3.
2 Na Igreja Católica, Doutor e Doutora da Igreja , são homens e mulheres cujos pensamentos, pregações, escritos e forma de vida enalteceram o cristianismo.Todos eles foram considerados modelos de santidade e que contribuiram de alguma forma original (e ortodoxa) para a doutrina e espiritualidade cristã, tendo sido o título reconhecido quer por um Papa, quer por um concílio ecuménico (embora nenhum concílio tenha jamais exercido essa prerrogativa); trata-se de uma honra rara (a Igreja conta apenas 33 doctores ecclesiæ entre os seus múltiplos santos), atribuída apenas a título póstumo e após a canonização.
Padre Antônio Vieira, que foi um grande admirador de Santo Antônio, a quem dedicou inúmeros sermões e proclamava-o Santo Universal, afirmava que a prática desses maus tratos ao santo podia ser interpretada como uma dívida, um condicionamento do santo ao cumprimento do pedido. 4
Na mentalidade dos fiéis estas práticas eram normais, apenas uma forma de alcançar os seus pedidos com mais rapidez e eficácia. Apesar de toda tortura, existe o respeito e a veneração.
1.1 A patente de Santo Antônio
Durante o período colonial no Brasil a imagem de Santo Antônio recebeu diversos títulos da graduação militar, sendo promovido a patente de capitão em várias cidades, recebeu o título de tenente-coronel do próprio D. João VI quando ainda era príncipe regente, em 1814, os soldos referentes ao título militar era recebido pelos responsáveis das igrejas da cidade as quais o santo era homenageado.
No período do Brasil Colônia, pela carta-régia de 07 de abril de 1707, o governo português facultou praça de Capitão, com o respectivo soldo, à Imagem do Santo Antônio do Convento de São Francisco da Bahia. Em 21 de março de 1711, confirma no posto de capitão à Imagem do Santo Antônio do Rio de Janeiro; a de Goiás, em 19 de novembro de 1750 com o soldo de 480 mil reis anuais; em 22 de fevereiro de 1784, é dado o posto de capitão à Imagem do Santo Antônio de Ouro Preto. Por decreto de 13 de setembro de 1810, D. João VI eleva o glorioso Santo, venerado aqui em nossa Cidade do Salvador, ao posto de Major de Infantaria, percebendo o soldo desta patente; promovido a Tenente-coronel com o respectivo soldo… 5
3 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA. Laura de Melo; NOVAIS. Fernando (orgs). História da Vida Privada no Brasil. p.187.
4 Idem, p.187
5 Jornal A Tarde de 13 de Junho de 1970. Santo Antônio – Coronel
Um artigo publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia6, transcreve a carta de patente de Tenente-coronel feita por D, João em 1814.
Faço saber aos que esta minha carta patente virem que sendo da minha particular devoção o glorioso Santo Antônio, a quem o povo desta corte incessantemente e com a maior fé dedica os seus votos; e tendo o céu abençoado os esforços dos meus exércitos com a paz que se dignou conceder a monarquia portuguesa, crendo eu piamente que a eficaz intercessão do mesmo santo tem concorrido para tão felizes resultados: Hei por bem elevai-o ao posto de Tenente-Coronel de infantaria e com ele haverá o respectivo soldo…
Estes títulos foram dados à imagem de Santo Antônio como forma de pagamento pela proteção dada durante batalhas e invasões de povos inimigos. O governador da capitania de Pernambuco concede o título de Praça a Santo Antônio antes de sair para Guerra dos Palmares.
O governador desta capitania, João do Souto Maior, por portaria datada de 13 de Setembro de 1685, mandou abrir assento de Praça a Santo Antônio, afim de seguir a sua viagem para a guerra dos palmares e proteger as armas reais na conquista desse quilombo; e ao mesmo tempo expediu as necessárias ordens, para que se pagasse ao sindico do convento de Olinda o soldo e importância do fardamento que lhe competiam. 7
Com toda esta veneração, encontramos Santo Antônio em Queimadas, terra do sertão baiano, como herdeiro de uma fazenda, gados e escravos. Herança esta que lhe rendeu um processo na justiça como veremos adiante.
Santo Antônio no banco dos réus
As Terras de Guedes de Brito
No início do século XVI, Portugal instituiu doações de terras com o objetivo de povoar as regiões em que viviam populações indígenas e as terras que eram sempre ameaçadas por invasores estrangeiros.
No início do século XVI, quando Portugal, no reinado de D. João III, estabeleceu concessões de terras com o fim de povoamento em vastas regiões, nas quais viviam populações indígenas e cujas terras eram ameaçadas constantemente por invasores estrangeiros, no caso, os holandeses. Através desse processo de ocupação territorial os capitães donatários recebiam gratuitamente 50 léguas de costa, tornando-se reais proprietários de apenas 20% das terras. Os outros 80% deveriam ser distribuídas sem qualquer ônus, a titulo de sesmaria, cujos sesmeiros se obrigavam a cultivá-las num prazo máximo de cinco anos. 8
6 Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Ano VI, Vol. VI, n. 21. Setembro de 1899. Variedade Histórica: A patente de Santo Antônio. P. 469-472
7 Idem; p 470
Através desse processo de ocupação territorial, as terras mais afastadas do litoral eram doadas a títulos de sesmaria. Tais concessões deram origem à formação de grandes latifúndios como é o caso dos Guedes de Brito.
O vasto império dos Guedes de Brito foi iniciado por Antônio de Brito Correa e sua esposa Maria Guedes, e teve continuidade pelo herdeiro da família, Antônio Guedes de Brito9. A vasta extensão territorial do patrimônio dos Guedes de Brito percorria a distância entre Morro do Chapéu, Ba. até Ouro Preto, Mg, isso significava 1.333 km de terras.
Antônio Guedes de Brito anexou essas terras a outras que herdara dos pais e tios no norte da Capitania da Bahia formando o segundo maior latifúndio da América portuguesa, superado apenas pelos D‟ávila, da Casa da Torre, cujos domínios estendiam-se por áreas atualmente sob jurisdição de várias unidades da federação, desde a Bahia até ao Maranhão.
A leitura realizada no documento também mostra a grandiosidade das posses territoriais que os Guedes de Brito amealharam durante o período colonial seja por via familiar (herança), seja por ocupação forçada. A incorporação de outras sesmarias ao patrimônio Guedes de Brito deu-se também mediante serviços prestados à Coroa por esta família ajudando na defesa da Colônia e através do acolhimento que dava às tropas portuguesas em suas terras, Em conseqüência desses relevantes serviços, foi concedido a Antonio de Brito Correa e depois legado ao seu filho – Antonio Guedes de Brito – o título de Mestre-de–Campo. 10
Em 1676 a Coroa portuguesa designou o desembargador Sebastião Cardoso Sampaio para fiscalizar a situação das sesmarias que até aquela data haviam sido concedidas. Todos os sesmeiros fizeram declaração das suas terras com provas dos respectivos títulos. Dentre estes declarantes estava Antônio Guedes de Brito, cuja declaração de bens foi publicada na integra na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia11
8 NEVES, Erivaldo Fagundes. Da Sesmaria ao Minifúndio (um estudo de história regional e local). Apud VASCONCELOS, Suani de Almeida. Carta de Sesmaria- Seculo XIX: Edição Semidiplomática e Estudo Histórico. www.filologia.org.br/…/Carta_de_Sesmaria_–_Século_XIX
9 O qual se transformou em um dos homens mais importantes da Bahia seiscentista, conquistando também vários
títulos como: Mestre de campo, Fidalgo de Sua Majestade, Provedor da Santa Casa de Misericórdia (1663) e Capitão de infantaria, por carta patente de 26 de fevereiro de 1667.
10 VASCONCELOS, Suani de Almeida. Carta de Sesmaria- Seculo XIX: Edição Semidiplomática e Estudo
Histórico. www.filologia.org.br/…/Carta_de_Sesmaria_–_Século_XIX_
11 Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1916. Ano XXIII, Vol. XI n.42. As Terras de Guedes de Brito, p. 69-74
„As fazendas de Curráes de gados nos districtos dório Real, possuo por título de herança de meu pai Antonio Brito Correa […] as Fazendas de Itapicurú desta parte da Bahia por escritura de compra […] as Fazendas dos Tocós por hum título de sesmaria dado a minha Mãy Maria Guedes […] Possuo metade da Matta de S. João, por arrematação […] Tenho huma Fazenda de Cana em Maré…‟
O documento mostra a grandiosidade das posses territoriais que os Guedes de Brito possuíam durante o período colonial sejam por sesmarias, por herança, compradas, ou por ocupação forçada. Muitas vezes ele declara o pedido de ampliação de determinados territórios às autoridades responsáveis.
Acima destas Fazendas do Itapicurú merim pedimos meu pai e eu ao Conde de Castelo melhor Governador que foi deste Estado em 26 de Outubro de 1652, principiando no Caguague, ou Caguaguena até a Serra do Tuyuyuba com oito léguas de largo. E em 2 de Março de 1665, pedi na mesma Caguague, junto ao Itapicurú por ele acima até as suas nascenças com seis léguas de largo por haverem muitos matos e serras com que não fazia toda a distância habitável, logo as povoei de meus próprios currais … 12
Dentro desta minuciosa declaração Antônio Guedes de Brito mencionou as fazendas dos Tocós, que segundo Nonato Marques13 foi nesta parte do território dos Guedes de Brito que o município de Queimadas foi fundado.
Possuo as Fazendas dos Tocos por um título de sesmaria dado a minha mãe Maria Guedes, ao Padre Manoel Guedes Lobo, a Sebastiana de Brito, a Ana Guedes em 14 de Dezembro de 1612 pelo Governador D. Diogo de Menezes. E dito Padre meu tio me fez a doação do que lhe tocava… E o Capitão Francisco Barbosa Paiva, marido de minha tia, Sebastiana de Brito fizeram venda ao meu pai do que lhes pertencia … as quais terras povoei, descobrindo-as, fazendo estradas e pazes com os índios Cariocas, Sapoias e Carapaus … 14
A margem direita do rio Itapicuru-Açu, existiam duas fazendas chamadas “As Queimadas”, ambas pertencentes à Dona Isabel Maria Guedes de Brito herdeira de imensos territórios deixados por seu pai Antônio Guedes de Brito. As fazendas eram chamadas de Queimadas, por causa das constantes queimas que faziam na caatinga para conseguir espaço para plantação.
Durante todo processo de elevação da fazenda seja em arraial, depois em freguesia (1842), e anos depois em vila (1884) o nome do santo esteve presente na denominação desta localidade. Apenas em 1915, com a lei estadual nº 1.081, que a cidade passou de Santo Antônio das Queimadas para ser simplificado apenas a Queimadas.
12 Idem, p. 70 e 71
13 Nonato Marques foi um memorialista queimadense que escreveu um livro relatando toda a história de Queimadas, desde o desbravamento das terras pelos Guedes de Brito até 1980.
14 Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1916. Ano XXIII, Vol. XI n.42. As Terras de Guedes de Brito, p.71
E foi aí que começou a história do julgamento de Santo Antônio das Queimadas, a qual abordaremos a seguir.
2.2 Aparecimento da imagem de Santo Antônio em Queimadas
Foi neste espaço do sertão nordestino que ocorreu a curiosa aparição de uma imagem de Santo Antônio. Segundo a história transmitida por gerações, a imagem deste Santo apareceu, inexplicavelmente, debaixo de uma árvore no alto de uma colina, local em que mais tarde, a igreja de Santo Antônio das Queimadas foi construída, lá permanecendo até hoje. A imagem foi encontrada por um vaqueiro debaixo de uma árvore, e infelizmente perdeu-se no tempo. Depois do julgamento, a imagem teria sumido e ninguém sabe seu paradeiro.
As entrevistas realizadas com moradores da cidade mostram certa contradição em relação ao tipo de árvore onde a imagem teria sido encontrada. Temos várias versões: licurizeiro, pindobeira, arirí, quixabeira, figueira. Não há um consenso em relação a isso, já que a árvore foi arrancada para a construção da capela e afirmam que onde se encontra o altar principal foi o local que encontraram a imagem de Santo Antônio.
Ao se deparar com a imagem, o vaqueiro a levou para a casa da dona das fazendas, Dona Isabel Maria Guedes de Brito, e ela o colocou no seu oratório. Curiosamente, no dia seguinte a imagem havia desaparecido. Mais tarde, foi encontrada no mesmo local que tinha aparecido pela primeira vez. Esse deslocamento ocorreu diversas vezes: ao sumir da casa da fazenda a imagem era sempre achada no local em que o vaqueiro a encontrou pela primeira vez. O fato foi dado como milagre.
[…] Queimadas começou a surgir ao redor dessas queimas da fazenda então daí o nome de Queimadas, e também tem uma ligação com a imagem de Santo Antônio, o povo conta que apareceu essa imagem dejunto [sic] de uma pindoba e então os escravos que encontraram levaram até a casa da fazenda. A senhora da fazenda muito piedosa chamou todo mundo para avisar e deixou a imagem dentro da casa da fazenda, daqui a uns dias a imagem desapareceu e foi achada de novo no lugar onde tinha sido encontrada no início e assim outras vezes […]15
Os sucessivos aparecimentos e desaparecimentos da imagem de Santo Antônio chegaram ao conhecimento de alguns missionários capuchinhos que lá estavam de passagem. Eles aconselharam Dona Isabel Guedes de Brito a construir uma capela em consagração ao santo no mesmo local onde a imagem apareceu transformando, daquele dia em diante, Santo Antônio em padroeiro da localidade, que passou a se chamar Santo Antônio das Queimadas.
A história do aparecimento da imagem de Santo Antônio em Queimadas logo foi conhecida por toda redondeza. Logo após a construção da capela, começou as romarias e peregrinações dos sertanejos, os quais vinham conhecer a imagem que tinha aparecido misteriosamente. Vinham prestar veneração, fazer e pagar promessas ao Santo tão milagroso.
Depois da construção da capela, Dona Isabel franqueou terras a quem quisesse morar naquela localidade. Assim o povoado começou a se formar a margem direita do rio Itapicuru. Muitos destes novos moradores eram peregrinos que vieram para venerar a imagem de Santo Antônio e resolveram residir no local.
Neste espaço nordestino que por si só é um local místico, onde o povo tem muita fé, Santo Antônio recebeu de Dona Isabel Maria Guedes de Brito, a dona das fazendas, uma herança. Segundo Nonato Marques, memorialista queimadense, após a morte de Dona Isabel seus bens foram legados àquela imagem de Santo Antônio: terras, escravos, gados. Estes bens eram administrados pela freguesia de Sant‟Ana do Tucano, que jurisdicionava Santo Antônio das Queimadas16.
2.3 – A prisão de Santo Antônio
15 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009* (Os nomes dos entrevistados são aqui substituídos por nomes fictícios a fim de preservar suas identidades.)
16 MARQUES, Nonato. Santo Antônio das Queimadas. Salvador, 1984. p.94
Segundo a memória coletiva dos queimadenses, entre o final do século XVIII e início do século XIX (não temos como comprovar com exatidão data por falta de documentação), Queimadas teria passado por um dos episódios mais pitorescos da história da religiosidade brasileira: o julgamento civil da imagem de Santo Antônio.
Depois de uma noite de louvação a Santo Antônio, um homem foi assassinado e o corpo foi colocado no adro da igreja. No sertão daquela época se fosse encontrado um morto na frente da porta da casa de qualquer pessoa, o dono da casa seria responsável pelo crime.
Nós sabemos que a lei daquela época quando tinha um crime, uma morte violenta de alguma pessoa onde se encontrasse o cadáver da pessoa o dono da casa respondia processo. Dizem os antigos que houve uma festa e uma briga entre os escravos e então houve um crime e deixaram o corpo na frente da igreja Santo Antônio e por isso foi como a lei mandava, foi aberto um processo contra Santo Antônio.17
Tinha aquela lei que onde aparecia a arma do crime, quem era condenado era o dono da casa onde a arma tinha aparecido, aí eles mataram um escravo e deixaram a arma, a faca lá na igreja, aí quem foi condenado foi Santo Antônio.18
Sendo assim o crime foi atribuído a um escravo que pertencia a Santo Antônio, pois o mesmo teria desaparecido neste dia sem explicações e nunca mais foi encontrado. Diante do acontecido à imagem do santo foi responsabilizada pelo crime cometido por seu escravo.
Isso se deu por causa de uma lei do período que penalizava o senhor pelos delitos cometidos pelos seus escravos, caso este não o entregasse na mão da justiça.
[…] um escravo de Santo Antônio que cometeu o crime e fugiu, e tinha uma lei naquele período que era muito respeitada, nessa região, que afirmava que se um escravo cometesse um crime qualquer, quem pagaria por aquele crime era o dono do escravo […]19
Segundo alguns entrevistados era uma lei colonial, mas Câmara Cascudo comenta sobre o episódio do julgamento de Santo Antônio citando que era uma lei do código criminal do império, artigo 28, que segundo ele dizia que “o senhor do escravo era responsável pela pena pecuniária devida pelo servo até os limites do seu próprio valor”. 20 Mas o código criminal do império, artigo 28,21 diz o seguinte:
Art. 28. Serão obrigados a satisfação, posto que não delinqüentes: 1º senhor pelo escravo até o valor deste.
2º que gratuitamente tiver participado dos produtos do crime até a concorrente quantia.
17 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009
18 Entrevista realizada com Sr. José * no dia 13 de novembro de 2009
19 Entrevista realizada com Marcelo* no dia 19 de outubro de 2009
Em razão da interpretação desta lei, a imagem de Santo Antônio teria sido obrigada a pagar pelo crime do seu escravo. Aprisionaram a imagem do santo nas terras dos Guedes de Brito amarando-a no lombo de um jegue ou de um burro e levaram para a comarca de Água Fria a mando do juiz, pois a localidade de Santo Antônio das Queimadas pertencia à comarca de Água Fria.
O Santo passou 30 dias preso na cadeia local no quarto da forca, e o místico pavor dos moradores fez com que enquanto durasse a prisão do Santo, a cadeia se transformasse na igreja da cidade. Centenas de pessoas iam para ali rezar e pedir perdão ao Santo. Mas os juizes, famosos pela sua austeridade, submeteram Santo Antônio a um longo julgamento. (…) sabe apenas que a imagem participou de duas audiências, sentou-se no banco dos réus, teve defensor e que duas testemunhas da apresentação da prisão foram ouvidas. 22
A justiça de Água Fria que tinha um poder temido em toda região, julgou e condenou a imagem do santo à perda dos seus bens, os quais herdara, como já foi mencionado, de sua devota, Isabel Maria Guedes de Brito.
Os bens de Santo Antônio foram confiscados e levados hasta pública para pagar à custa do processo. Segundo Nonato Marques, um coronel chamado Francisco de Paula Araújo Brito, fazendeiro da Inhambupe comprou as terras, mas não foi tomar posse.
Naturalmente Santo Antônio não podia ter feito esse crime não é, mas foi a julgamento justamente para ser esclarecido que Santo Antônio não foi o criminoso, e sim que tinha que encontrar criminosos em outras bandas né! […] mas tinha que pagar as custas do processo, então o único que tinha bens era Santo Antônio, então correu pra achar os bens de Santo Antônio que era gado , era escravos, que era as terras, e correu pra achar esses bens , sobretudo das terras , por que as donas do terreno tinha deixado 6 léguas em volta de propriedade de Santo Antônio. 23
20 CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 4ª Ed. São Paulo. Melhoramentos, 1979. p. 62 – 63 Verbete: Antônio
21 Código Criminal do Império do Brasil. Parte Primeira. Dos Crimes e das Penas. Art. 28. Disponível em:
<www.ciespi.org.br/base_legis/legislacao/COD11a.html>
22 Jornal da Bahia, Edição Especial, 10-05-1976. Prisão de Santo foi maldição para Queimadas e Água Fria.
23 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009
Anos depois da compra destas terras, os herdeiros de Francisco de Paula é que foram reivindicar estas terras, porém boa parte delas já estavam sendo habitada por muitas pessoas. Estes herdeiros começaram a cobrar imposto destas pessoas, os chamados foros das terras.
Esse leilão vamos dizer assim ficou deserto , ninguém queria arrematar essas terras, até quando apareceu um português que tinha um pouco de condição né, em Salvador, então disseram: olha tem umas terras ai assim, assim, no leilão…vai lá no fórum, e ai ele foi e adquiriu essas terras, né. Mas nunca veio tomar posse, então as terras ficaram indivisas. Cada qual construiu a sua casinha onde queria e pronto. Até esse senhor português morreu teve dois filhos, não é, então um dos dois filhos achou que podia explorar isso, chegar em Queimadas e dizer essas terra é minha , eu sou o herdeiro, então cada qual me paga a sua taxa da terra onde construíram.24
Não temos a data em que estes herdeiros chegaram a Queimadas, apenas a data de 1943 em que alguns moradores se uniram e compraram as terras a estes herdeiros.
Segundo alguns entrevistados, os moradores que compraram estes terras tinham um poder aquisitivo melhor que os outros, se uniram e fizeram uma sociedade para comprarem a metade das terras de Queimadas, dividindo a quantia para cada um, mas há uma contradição na quantidade destes moradores, tendo uma variação de 25, 35, quarenta e 42 pessoas. Existe uma certidão de compra de terras expedida pela comarca de Bonfim, em 1943, que especifica os 36 moradores que tinham comprado as terras de Queimadas nas mãos do Senhor Eduardo Pondé de Mendonça e sua esposa Olinda Brito Pondé25.
Outro senhor chamado Jaconias comprou a outra metade das terras de Queimadas. Não temos conhecimento das mãos de quem o senhor Jaconias teria comprado a outra parte, pois não tivemos acesso a nenhuma documentação sobre o assunto. Apenas a fala de um dos entrevistados que diz que havia seis herdeiros das terras de Queimadas, e que este senhor teria comprado a parte das terras de cinco herdeiros e os outros que se associaram compraram a parte de apenas um herdeiro.
Estes novos donos das terras de Queimadas passaram a doar e a vender os lotes destas terras. Nas entrevistas, muitos dizem ter conhecido alguns desses compradores, testemunham também que as terras onde moram foram compradas por seus pais e familiares nas mãos de alguns destes sócios.
Na entrevista com um filho de um desses sócios, ele afirmou que já deu várias escrituras das terras e que até hoje ele tem poder pra fazer isso. Ele pode expedir escritura das terras em qualquer local da cidade de Queimadas, pois os sócios não dividiram as terras por lotes. A parte que eles compraram pertencia a todos. E que o pai dele foi um dos poucos que deixara um inventário para os filhos.
24 Idem
25 Livro. 3-D. Transcrição das Transmissões: As fls 94. Ano de 1943. Nº de ordem: 5.611.
3- A ideia de castigo
Depois do processo criminal a imagem de Santo Antônio supostamente desapareceu. Ninguém sabe o paradeiro da imagem, como dissemos acima. O mesmo aconteceu com a documentação do processo judicial que até hoje não foi encontrada nos arquivos de Água Fria, de Queimadas, de Irará, pra onde foi transferida a sede da comarca, nem no Arquivo público da Bahia.
Décadas depois, alguns políticos locais tentaram reaver o processo e recuperar a imagem para trazê–la à cidade de Queimadas, mas a tentativa foi inútil: eles não conseguiram encontrar nem a imagem, nem o processo judicial.
Não se sabe precisamente a data desse acontecimento. Não foi encontrado nenhum documento que indique uma data precisa para esse processo de julgamento civil. Tem algumas especulações por alguns jornais e um memorialista local sobre datas prováveis, final do século XVIII, início do século XIX, mas nada decisivo. “Assim corre e ressurge para os moradores da região a velha história da maldição, que data dos fins dos séculos XVIII.”26.
Os entrevistados afirmam que esta história era contada por seus bisavós, avós, pais, tios ou pessoas de mais idade.
Desde quando eu me entendi por gente que eu lembro que as pessoas mais velhas falavam que Santo Antonio, a imagem de Santo Antônio apareceu lá onde é a igreja de Santo Antônio hoje, e depois prenderam esta imagem levaram pra Água Fria e depois de Água Fria sumiu, ninguém sabe pra onde. 27
Depois do episódio do julgamento foi cultivada uma idéia de castigo e maldição, tanto para Água Fria, quanto para Queimadas. “Eu acredito (na idéia de castigo), Água Fria acabou, não tem nada. Aqui o povo ainda faz alguma coisa, mas a cidade é fraca, é derrubada.”28.
Água Fria, era um centro comercial muito importante, era sede da comarca de toda a região. Segundo o jornal da Bahia, foi depois do julgamento da imagem de Santo Antônio, que Água Fria perdeu sua autonomia de comarca para Irará, que foi um dos seus distritos. A cidade começou a perder sua importância e sua riqueza, muitos moradores se mudaram para outra cidade, a cidade começou a “morrer”. Até hoje a cidade não conseguiu se desenvolver.
26 Jornal da Bahia, 13 de junho de 1972. Preso o Santo, esta cidade deu pra trás.
27 Entrevista realizada com Dona Maria* no dia 22 de Outubro de 2009
28 Entrevista realizada com a Srª Joana* no dia 15 de novembro de 2009
A partir da prisão do Santo Antônio e do seu julgamento, a miséria se abateu, principalmente sobre Água Fria, onde ele ficou enclausurado no quarto da força, da cadeia local. Se verdade ou não, o certo é que Água Fria que exercia domínio econômico de Juazeiro ao porto de Cachoeira, hoje não passa de ruínas. Perdeu inclusive, dias após o julgamento de Santo Antônio sua autonomia para Irará. 29
A partir daí a cidade de Água Fria começou a morrer. Hoje, do importante centro comercial que foi outrora, não passa de ruínas, silencio. Com menos de mil habitantes, ruas vazias, a grande praça verde, a grandiosa igreja de outrora, as ruínas da cadeia antiga vai desaparecendo aos poucos. 30
Em Queimadas esta idéia de maldição também foi cultiva, por muitos supersticiosos, ligando tudo o que acontecia de ruim à cidade a prisão de Santo Antônio.
Entre 1910 e 1911, Queimadas sofreu a duas enchentes do rio Itapicuru-Açu a primeira em 26 de dezembro de 1910 e a segunda no final de fevereiro de 1911. Estas enchentes consecutivas destruíram a cidade, das 450 casas existentes só restaram cinquenta. A população de 2.500 habitantes foi reduzida a mil. Isto só fortaleceu a idéia de castigo sobre Queimadas.
Em menos de vinte e quatro horas a impetuosidade do Itapicuru-Açu arrastou rio a baixo quase que totalidade das casas, restando em pé 28 residência erguidas em 1845 e mais 22 outras, nas colinas a margem esquerda da ferrovia. De 2.500 foi reduzida para mil a população da cidade e isto provocou em 6 de março de 1911, a transferência da sede do Termo para o arraial de Itiúba . Era a maldição que se repetia.31
Até hoje encontramos escombros das casas que foram destruídas nesta época, boa parte da igreja Matriz, que estava sendo construída toda de pedra, foi derrubada ficando apenas a fachada, até hoje existente nas intermediações dos Lions Clube.
Depois deste episódio, Queimadas foi reconstruída distante das margens do rio Itapicuru, onde está localizada a prefeitura e a cadeia pública. As casas foram construídas nesta área, mas com o aumento da população muitas pessoas construíram suas casas no mesmo local onde as enchentes destruíram as antigas casas de Queimadas. Essas sofreram várias outras enchentes e permanecem erguidas graças ao material utilizado atualmente que são mais fortes, como tijolo, cimento, cal…, do que o adobe, a taipa, o barro que era usado pra construir as casas antigamente.
29 Jornal da Bahia, Edição Especial, 10-05-1976. Prisão de Santo foi maldição para Queimadas e Água Fria
30 Idem
31 Idem
Queimadas sofreu com mais dois acontecimentos catastróficos que para muitos místicos só é mais uma prova de que Queimadas é um lugar amaldiçoado: a guerra de Canudos (1896) e um assalto cometido por Lampião (1929) os quais tiraram à paz da cidade.
Durante a Guerra de Canudos, Queimadas serviu de ponto de chegada e de partida das tropas dos soldados, jornalistas, médicos e políticos, que vieram combater em Canudos. Assustando os moradores a ponto de largarem suas casas e se esconderem dentro do mato.
Da mesma forma, o assalto que Lampião realizou em Queimadas em 22 de dezembro de 1929 foi também um momento muito difícil para seus moradores, pois além de saquear toda a cidade ele assassinou sete soldados que prestavam serviços na segurança da cidade. Este episódio foi interpretado como mais uma forma de castigar a cidade de Queimadas por causa da condenação de Santo Antônio.
Em algumas entrevistas ainda vemos que esta idéia de maldição ainda permanece no imaginário das pessoas, fixando a idéia que os moradores de Queimadas pagam pelos erros cometidos no passado por seus antepassados, pois a cidade não progride, até consegue algumas vitórias, mas logo depois as perde. Como afirma Wunenburger “o imaginário serve para dotar os homens de memória fornecendo-lhes relatos que sintetizam e reconstroem o passado e justificam o presente.32”
Santo Antônio foi um Santo muito sofrido eu lembro que a minha avó falava que na época tinha um padre que saiu de Queimadas e bateu a terra das sandálias dizendo: que Queimadas era de ser queimadas pro resto da vida. E dessa vez, acho que nós hoje não temos nada com isso, estamos pagando alguma coisa, né?33
Depois disto vieram àqueles capuchinhos e disse que Queimadas tinha que ser queimadinha, que ia ter um dilúvio que ia acabar com a cidade, justamente no ano de 11, passou a enchente carregou a metade da igreja da Matriz e aí vem acontecendo isso, Queimadas ta cada vez mais afundando e parece que tem que ser Queimadinha mesmo! Tudo indica que parece, cada vez vai piorando.34
32 WUNENBURGER. O imaginário. São Paulo. Loyola, 2007. p.63
33 Entrevista realizada com Dona Maria* no dia 22 de Outubro de 2009
34 Entrevista realizada com Sr. João* no dia 10 de Julho de 2009
Queimadas é chamada por muitos dos seus moradores da cidade do “que já teve”, pois durante os seus 125 anos de existência já foi bastante próspera, com o maior núcleo populacional da região. E hoje é uma cidade sem muitos progressos.
Cidade do que já teve, consolidou como um ditado popular por causa das coisas que já existiram em Queimadas e que com o tempo não progrediram, ao contrário se dissiparam. Queimadas vivia praticamente da produção de sisal, hoje quase que não encontramos cultivo de sisal na cidade, as batedeiras – locais onde se processava o sisal para depois ser exportado para outras cidades – quase que não funcionam mais. “Os homens inventam, desenvolvem e legitimam suas crenças em imaginários na medida em que essa relação como imaginário obedece as necessidades, satisfações, efeitos a curto e a longo prazo que são inseparáveis da natureza humana.”35
Houve várias agências bancárias – Baneb, Brasil, Nordeste – hoje apenas existe Banco do Brasil e uma cooperativa de crédito de produtores e cooperados – ASCOOB. Teve duas filarmônicas; Queimadas foi sede da COELBA – empresa responsável de distribuição de energia da Bahia; as tradições populares estão minguando a cada ano que se passa existiam várias festas populares como cantos de reis, carnaval, São João, desfile cultural no dia da lavagem da igreja de Santo Antônio, hoje transformada em micareta, dentre outras. “Queimadas já teve, já teve várias coisas que acaba! Várias coisas e caiu, teve duas coletorias, teve federal e teve estadual, perdeu. Até a Coelba que era daqui perdeu também, foi pra outra cidade, até a embasa é dominada de Santa luz.”36
Queimadas já teve algumas fábricas que possibilitaram a muitos jovens e pais de família a terem um emprego na própria cidade, mas infelizmente não durou muito tempo fechando e forçando a ida de muitas pessoas tentarem melhorias de vida em outras cidades maiores com mais chances de empregos.
Outro fato que entristece a população inteira é o abandono do rio Itapicuru, rio que banha a cidade, que sustenta muitas famílias e que poderia sustentar muito mais, está morrendo a cada dia. Recebendo os esgotos da cidade inteira, sem tratamento, entulhado por areia em pontos centrais, as encostas estão sendo devastadas, as pessoas jogam lixo na beira do rio.
A cidade hoje é sustentada basicamente pelos empregos que a prefeitura disponibiliza alguns empregos estaduais, pelos aposentados que às vezes sustenta famílias inteiras, pelo pequeno comércio local, por pequenos agricultores e pecuaristas. Nada muito significativo, grande prova disso é que a maioria dos jovens sai em busca de condições financeira para uma melhoria de sua vida.
35 WUNENBURGER. Op.cit. p.54
36 Entrevista realizada com Sr. João* no dia 10 de Julho de 2009
Este ditado da cidade do que já teve é conhecido também em várias outras cidades, pessoas que já moraram ou que tem parentes em Queimadas ou turistas atribuem este ditado a cidade diante dos acontecimentos.
Muitos dos entrevistados concordam com o ditado e afirmam que é resultado da prisão de Santo Antônio, como uma forma de castigo para pagar tal atitude que envergonha a cidade.
Mas também temos muitas pessoas que concordam com o ditado da “cidade do que já teve”, porém não concordam com a idéia de castigo. E sim que as coisas que deixaram de existir em Queimadas é reflexo das atitudes do corpo administrativo que desde o início comandam a cidade, os quais só pensam em crescer suas contas bancárias e não pensam no bem do povo e da cidade.
Bem esse ditado é interessante né, por que as vezes as pessoas fazem essa gozação da própria cidade , né, mas se a gente observar bem toda cidade, é cidade do já teve, né, por que as coisas se evoluem, então hoje tem precisão de ter uma coisa, uma organização, e bom tem, amanha as coisas mudam, também essas coisas vai passando vai se multiplicando ,essa gozação que o povo tem é por que as vezes umas coisas que parecem que florescem, não é , de uma hora pra outra esmorecem, mas isso é na minha opinião é coisa comum, não é só em Queimadas que acontece isso!37
A idéia do já teve existe. O que a senhora pensar Queimadas já teve. Queimadas já teve três bandas de músicas, Queimadas já teve três clubes, hoje não tem nenhum funcionando, né, agora, é uma infinidade de coisas que Queimadas já teve que não tem mais. (…) Mas não tem influência disso (a prisão de Santo Antônio). É que nossos políticos não se interessam em adquirir as coisas…38
Queimadas é uma cidade centenária que tem um desenvolvimento tardio, seus moradores terminam se acomodando com a situação uns atribuindo isto ao julgamento do santo como forma de pagar por este pecado e outros culpando a ação dos administradores em geral, mas sem se colocarem como agente ativo deste desenvolvimento e também responsável pelo retrocesso da cidade.
37 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009
38 Entrevista realizada com Sr Zeca* no dia 18 de agosto de 2009
Conclusão
A história da fundação da cidade de Queimadas está atrelada ao suposto aparecimento da imagem de Santo Antônio. Depois da construção da capela os romeiros vinham venerá-la e muitos desses ficaram definitivamente morando em Queimadas. E com a facilidade dada pela dona das fazendas, Maria Isabel Guedes de Brito, para quem quisesse residir, a localidade começou a crescer e se desenvolver.
As trezenas que acontece todo ano, 1 a 13 de junho, atraem várias pessoas de cidades vizinhas e dos povoados em torno de Queimadas, para acompanhar as procissões, as orações e os leilões.
O julgamento da imagem de Santo Antônio é um episódio misterioso, não temos explicações para tal atitude na lei humana. Levando em conta que a veneração e o respeito que era prestada a todos os santos, principalmente a Santo Antônio que era um santo muito requisitado pelos fiéis para resolver todo o tipo de problemas, passando por arrumar um marido, achar coisas perdidas até curar doenças. Até títulos militares ele ganhou por causa da sua proteção.
Mesmo não tendo fontes documentais que comprove que a imagem de Santo Antônio das Queimadas passou por um julgamento criminal, esta história foi passada por gerações através da oralidade, ficando viva até hoje no imaginário dos queimadenses, sendo um forte fato que faz parte do histórico da cidade.
Diante de todas as observações leva-nos a pensar que houve uma necessidade da população de apropriar-se da representação da condenação de um santo para justificar a decadência da cidade.
Apesar da idéia de castigo ainda permanecer no imaginário de alguns moradores queimadenses, muitos já se libertaram desta idéia responsabilizando o homem como o único culpado pela regressão acontecida a cidade. E que o homem é também responsável pelo progresso e que deve lutar por isso, sem ficar se escondendo atrás de uma lenda, usando-a para querer justificar tudo de ruim que acontece.
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Fonte: Ariene Pinto Góes Matos – UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV – LICENCIATURA EM HISTÓRIA – Conceição do Coité Fevereiro de 2010
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Colaboração: Mainar Lírio Coelho – Queimadas Ba
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade