Preta Gil – Cantora, compositora e empresária estava em tratamento contra um câncer de intestino; filha de Gilberto Gil, ela tomou para si bandeiras como a luta contra o racismo e a gordofobia, os direitos das mulheres e da comunidade LGBT+ e deixa um legado de alegria, transformação e amor próprio – Foto: Reprodução / Instagram @alexsantanaphotographer.
Preta Gil morreu aos 50 anos, neste domingo (20). A informação foi confirmada à Quem pela assessoria da artista, que disse ainda que a família deve se manifestar publicamente em breve. A cantora, compositora, empresária e atriz estava em Nova York, em tratamento contra um câncer colorretal, diagnosticado em janeiro de 2023 e que entrou em remissão no final do mesmo ano. Em agosto de 2024, a doença voltou em quatro locais do corpo: dois linfonodos, uma metástase no peritônio e um nódulo no ureter.
Ela chegou a procurar uma segunda opinião no exterior e fez uma cirurgia de 20 horas no dia 19 de dezembro para retirada dos tumores. Filha de Gilberto Gil, nascida no berço dos grandes da MPB, Preta deixa um filho, Francisco, de 28, e uma neta, Sol de Maria, de 7. Deixa também um legado de luta contra o racismo, pelo direito das mulheres e da comunidade LGBT+, e pela autoaceitação e amor próprio.
Ao longo de todo o tratamento contra a doença, a cantora compartilhou a rotina de exames, internações e cirurgias com os fãs, das pequenas vitórias aos grandes reveses, como o choque séptico gravíssimo e o fim do casamento devido à traição do ex-marido. Em agosto de 2023, passou por uma cirurgia de 14 horas, para extirpar o tumor e ainda fazer uma histerectomia total abdominal — retirada do útero através de uma incisão no abdômen. Só ano seguinte ela revelou que precisou amputar o reto
No final de novembro daquele ano, anunciou que voltaria ao hospital, para reverter a ileostomia feita na primeira operação. “É fazer habilitação, me adaptar e seguir a vida. Sou muito grata de verdade”, disse ela ao falar dos exames pré-operatórios, mais uma vez compartilhando com o público mais uma passo na jornada contra a doença.
Em 2024, Preta revelou a volta do câncer e uma nova rodada de quimioterapia, que não saiu como ela ou os médicos esperavam. “A gente tem que buscar alternativas em países diferentes, com tipos de estudos diferentes, ensaios diferentes ainda não publicados ou publicados, drogas que ainda não chegaram ao Brasil”, pontuou, ao se consultar no Memorial Sloan Kettering Cancer Center (MSK), um hospital de referência no tratamento oncológico nos Estados Unidos.
Nos últimos anos, Preta usou sua voz para lutar pelo que acreditava, não só com suas músicas, mas pelas redes sociais, entrevistas, shows. A própria imagem, lembrava sempre ela, ia contra os “padrões”: “uma mulher preta, gorda, bissexual”, disse a Quem, ao completar duas décadas de carreira, em 2022.
Preta era a quarta dos oito filhos de Gilberto Gil. Afilhada de Gal Costa, chamava Caetano Veloso de tio e cresceu brincando com os filhos de outros medalhões da música. Tinha tatuado no braço “Drão”, apelido de sua mãe, Sandra Gadelha, nome de uma das músicas mais lindas do pai e sua favorita, como ela mesma gostava de dizer. Contava que com 5 anos “botava maiôzinho e imitava as Chacretes, a Gretchen, as Frenéticas”.
A vontade de ser artista veio cedo, e o medo e as comparações com a família também. Comprou as paranoias alheias, montou uma empresa de marketing bem-sucedida, foi mãe nova de Francisco, da união com o ator Otávio Müller. Com o que falava ter sido um combo do retorno de Saturno, terapia, astrologia e os sonhos recorrentes com o irmão Pedro Gil, morto em um acidente de carro em 1990, aos 28 anos se lançou como cantora – o primeiro álbum, Prêt-à Porter, já trazia muitas das questões que a cantora desenvolveria ao longo da vida, mas a reação não foi a que ela esperava.
“Estava despreparada para uma sociedade que à época eu falava que era careta, mas, não, era uma sociedade conservadora, machista, misógina, racista, homofóbica”, contou ela que fez um ensaio nua com a fotógrafa Vania Toledo, que morreu em 2020, para divulgar o trabalho. “Hoje a gente tem nome para tudo aquilo. Mas, lá atrás, eu falava: ‘meu Deus, mas por que que estão criticando o meu corpo, mas por que ninguém ouviu meu álbum, só quer saber o que que o meu pai achou de eu posar nua?‘ Foi um choque”, lembrou.
Preta perseverou. Lançou outros três discos, Preta (2005), Sou Como Sou (2012) e Todas as Cores (2017); fez participações como ela mesma em novelas como Cheias de Charme (2012) e Pé na Cova (2013) e atuou como atriz em Caminhos do Coração (2007), Os Mutantes (2008) e Ó Pai Ó (2008). Criou um bloco que arrastava mais de um milhão de pessoas pelas ruas no Carnaval, animou casamentos, formaturas e eventos corporativos e fez shows de Norte a Sul e no exterior.
Em um deles, em 2016, viveu outra virada de chave. No palco do Teatro Castro Alves, em Salvador, levou uma vaia sonora ao dizer que era mulata. Em suas próprias palavras, foi se letrar e entender as nuances do racismo e escureceu sua vida e seus negócios – Preta tinha orgulho de ter mais de 50% da equipe da Mynd, a agência de marketing digital que fundou em 2017, composta por pretos.
Com tino para negócios, revolucionou, ao lado de seus sócios, a forma como a comunicação é feita nas redes sociais, se tornando ela mesma uma das maiores influenciadoras do Brasil. Preta, que chegou a participar do Medida Certa, quadro do Fantástico em que famosos tentavam perder peso, abandonou os filtros e recursos de edição e passou a postar fotos sem maquiagem e de biquíni. Deixou de pintar os cabelos na pandemia e assumiu os brancos. Já em tratamento contra o câncer, deu bronca em que dizia que estava “linda” mais magra, lembrado que perdia peso por estar doente.
Não era “lacração”: Preta, que confessou em entrevista se sentir inadequada desde sempre, tinha entendido que ao longo da vida construíra camadas para se proteger, uma armadura que abrangia vários aspectos de sua vida. E foi desmontando tudo que não era ela. “Você passa uma vida inteira para descontruir uma coisa que construiu na sua infância e na sua adolescência como mecanismo de defesa, achando que aquilo é personalidade”, explicou.
O hate veio sempre na forma de comentários gordofóbicos e racistas – aos primeiros a cantora respondeu continuando com as publicações de seu corpo afirmando ainda mais seu direito de ser quem era nas redes; aos segundos recorreu à Justiça, denunciando à polícia quem a discriminava por sua cor.
Em algumas dessas ocasiões, Preta teve ao seu lado o ex-marido, Rodrigo Godoy. Antes dele, a cantora tinha sido casada com o roteirista, diretor e empresário Rafael Dragaud – ela sofreu dois aborto espontâneos durante a união – e com o mergulhador Carlos Henrique Lima, de 2009 a 2013
Preta e Rodrigo se conheceram por intermédio de um amigo em comum e se casaram com pompa e circunstância em 2015, na antiga Catedral da Sé no Rio, com um festão de 12 horas para 700 convidados. A união, aparentemente feliz – Rodrigo se dizia avô de Sol de Maria e viajava com a família Gil frequentemente – terminou este ano. Ele traiu Preta com uma das stylists da esposa, em um caso que se tornou público, quando a cantora já tinha sido diagnosticada com o câncer.
Vida pessoal exposta, Preta confirmou a traição, exibiu sua decepção e seguiu em frente, focada em seu tratamento médico. A cantora precisou ser ressuscitada devido à sepse e passou 21 dias em uma UTI. Fez 25 sessões de radioterapia associada à quimioterapia oral e foi à programas de televisão reforçando a importância da prevenção precoce, que inclui a colonoscopia a partir dos 45 anos. Sempre com a certeza de que venceria o câncer, retornou à mesa de cirurgia em meados de setembro para retirada do tumor.
Do hospital, saiu com uma bolsa de ileostomia, a cirurgia que, assim como a colostomia, desvia o fluxo das fezes até uma abertura realizada cirurgicamente no abdômen, o estoma. As fezes passam a ser coletadas pela bolsa, removível e que necessita ser higienizada várias vezes ao dia. Preta passou então a, novamente, usar o alcance de sua voz para tirar dúvidas sobre a bolsa em suas redes. “Podemos romper os preconceitos”, ensinou ela, que postava fotos de biquíni com a bolsa, normalizando a imagem da pessoa estomizada.
Antes, mesmo da primeira cirurgia, ao lado do pai, do filho, dos irmãos e sobrinhos, voltou aos palcos em alguns dos shows da turnê da Família Gil. Ovacionada, deixou a emoção correr solta. “Poder chorar no colo de quem me ama, poder sarar as feridas recebendo o amor de quem me respeita com aplausos e o coro de amor que recebi, é um presente divino”, assegurou. Em agosto de 2023, completou 49 anos com festa e alegria, reunindo do ex-marido a amigos de uma vida inteira, com Carolina Dieckmann, ex-namorados e a família, celebrando a vida. “O amor cura”, ensinou.
Um ano depois, celebrando meio século de vida, lançou sua biografia, Preta Gil: Os Primeiros 50. Ali narrou a vida da infância a Salvador à mudança para o Rio, a gravidez, o trabalho como publicitária, a virada para a música, o racismo, os amores e as dores, além da paixão pela única neta, Sol de Maria. “Continuo vivendo. Feliz. Nesse momento, aos 50 anos, me sinto como aquela Preta de 15, com tudo novo pela frente. Mas com muita coragem. Nada mais vai me paralisar novamente”, prometeu.
Fonte: https://revistaquem.globo.com – Por Raquel Pinheiro e Carla Neves
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