
Este artigo foi originalmente publicado em 29 de dezembro de 2018 e, desde então, conquistou grande repercussão entre os leitores – especialmente os mais jovens – ao apresentar figuras marcantes da história de nossa cidade, nosso município e de toda a região. Como bem destacou a autora, esses personagens também fizeram parte da infância e adolescência de muitas gerações: a nossa, a de nossos pais e a de nossos avós.
Sete anos depois, a autora retorna com uma edição revisada e ampliada desse material tão querido, agora publicada com o título “Vale a pena ler de novo”. Uma oportunidade especial para reviver essas memórias e, quem sabe, descobri-las pela primeira vez sob uma nova perspectiva.
Registramos aqui nossos eternos agradecimentos à autora, Iolanda Damasceno Dreschers, pelo seu olhar sensível e sua dedicação à memória da nossa comunidade.
Florisvaldo F. dos Santos
Sempre senti uma grande atração pelos loucos e Cansanção tinha os seus, alguns deles foram meus doidos de estimação: o Sulu, a Tarrafa, a Glória e a Joventina, estes tinham trânsito livre na casa dos meus pais, ali eles encontravam paz, sombra, água fresca e comida.
O SULU,
O Sulu, era do Caetano, estatura mediana, branco, falava baixinho, vivia limpando as unhas de 3 cm de comprimento, e onde quer que chegasse, pedia água para lavar as mãos e fazer bochechos. Quando lhe perguntavam para que ele queria aquelas unhas enormes, ele respondia: “é pra cutucar”.
Ele aparecia e desaparecia, era andarilho, vivia pelo “mundo”, não parava por muito tempo em lugar algum, mas quando em Cansanção, tinha preferência por frequentar a porta de algumas casas… Eu me sentia muito orgulhosa porque ele vinha sempre à casa dos meus pais, sentava-se no degrau que tinha no rol de entrada, recebia comida, água e ficava ali por um bom tempo, como que descansando, à noite dormia na saleta que dava acesso à lateral da casa.
Eu me encantava vendo aquela figura misteriosa, usando chapéu baeta e muitas peças de roupa, umas sobre as outras. Eram camisas, calças e paletós de linho, na cintura uma corda onde carregava amarrados os canecos e chaleira de alumínio. Um doido original, como uma obra de arte viva ambulante.
Ele era apaixonado pela Popó, moça que trabalhava em uma casa de família da rua da feira, foi Popó quem ensinou aos adolescentes daquela época a namorarem. Do filho da professora ao Sulu, todos foram seus “alunos”. Os meninos iam para os becos com a Popó, davam dinheiro para ela mostrar partes do corpo enquanto outros ficavam observando a rua, para avisar se estava vindo algum adulto … e assim a vida corria.
O Sulu, certamente não fazia parte das “brincadeiras”, mas sabia o que acontecia e não tirava a Popozinha da cabeça.
Sabe-se que ele andava por todas as cidades vizinhas, pelas mais afastadas também. Certa vez, ficou alguns anos sem aparecer, todos o tinham por morto, mas de repente ele apareceu, como se nada tivesse acontecido, e disse a quem perguntou que esteve tim tim tim na cidade de “Som Palo” (São Paulo).
E que sempre que lhe perguntavam por onde andara, ele deslanchava: “tim tim tim, cidade de Santa Luzia, (antigo nome de Santa Luz), cidade do Cumbe, (antigo nome de Euclides da Cunha) tim,tim, tim cidade da Cachorra Assada, tim, tim, tim, cidade da Itiúba, cidade da Queimadas, cidade do Uauá, cidade da Parelha… (para ele, sítios, fazendas, povoados, tudo era cidade), fazia pausas e recomeçava a falar por onde andou.
O Sulu foi encontrado morto na estrada entre Santa Luz e Queimadas, a 70 quilômetros “de casa” pode ter morrido de calor e sede, talvez estivesse voltando para ver “sua Popozinha”, na sua cidade, tim, tim, tim cidade de Cansanção.
O ZECA e A GLÓRIA ,

Ele manso, ela que fora bonita, cabelos negros e cheios de cachos sobrando por baixo do lenço sujo, pele clara, mal cheirosa, desbocada, olhos verdes voltados para o Zeca, era doida de pedra, mas chamava seu amado de ” meu Zeca”. A molecada, descobriu a maneira de deixar a Glória tresloucada, dizendo: “o Zeca é meu, o Zeca não gosta de você!”. Ela levantava os braços, arrancava o lenço da cabeça, se descabelava, jogava pedra, xingava, chorava … e os moleques continuavam a provocar os ciúmes da Glória e o medo de perder o seu Zequinha. ” O Zeca é meu” ela gritava; o Zeca ria atoa… não sabia porque, nem de que… só ria e soprava o apito que alguém lhe dera para alimentar o sonho de ser guarda de rua, felizo carregava pendurado no pescoço, e dizem que no bolso carregava um chocalho de cascavel.
Os dois não se separavam, nasceram um para o outro, tinham unhas grandes e sujas, ganhavam comida pelas portas, moraram por longo tempo, em uma das salas abandonadas da construção inacabada, onde hoje funciona o Hospital Senhora Santana. Ali mesmo também tinha uma sala pintada e arrumada com carteiras escolares, onde a professora Ritinha, deu aulas por alguns anos, até assumir a diretoria da Escola João Cordeiro, e na hora do recreio os meninos e meninas também, iam ” atentar ” a coitada da Glória.
Por fim, conseguiram uma aposentadoria para o Zeca e para a Glória, alugaram uma casa onde eles foram morar. Quando um morreu o outro logo morreu também, porque eram uma alma só.
A TARRAFA (Neném)
Veio do Sítio das Flores, quando ainda era muito jovem, mas já tinha filhos, estes ficaram lá com os parentes, e quando ela veio “à rua”, de Cansanção, em um dia de feira livre, chegou pedindo esmola, sentiu-se bem, pois as pessoas lhe deram roupa e dinheiro, coisas que ela adorava. Nunca mais quis saber do Sítio das Flores. Era alta, tinha um jeito desengonçado de andar, parecia que ia cair para a frente ou para os lados e dava passos apressados sempre em busca de dinheiro, a mão chegava primeiro que o resto do corpo.

Logo que chegou em cansanção arrumou como protetora, dona Elvira Salvador, que deu a ela um mealheiro, assim Neném, como gostava de ser chamada, foi juntando trocados até o dia em que tinha o suficiente para construir um pequeno quarto.
— “Orlanda”, traga um vestido comprido pra eu.”
e eu trazia (de Salvador), ela ficava por alguns dias vestida com o mesmo vestido, e quando aquele estava sujo, o largava por ai, “no munturo”, (não existia lixeira nas ruas quarenta anos atrás, … acho que continua não existindo.
Neném teve mais filhos, em Cansanção, filhos de aproveitadores das ruas, alguns destes filhos morreram outros são saudáveis e levam vida normal, o caçula é o Sôssô, que por vida, ficava ao lado da mãe, ela pedia dinheiro e já passava direto pra ele guardar.
A última vez que vi a Neném, estava a 100 metros de distância, foi em 2017, senti uma alegria enorme, me disseram que ela já tinha morrido, por isso gritei, com toda garganta e pulmão, Neneeeeeeeeeeeeeeeeemmmmm!!! ela ouviu e veio rápido, quase caindo, parecia que tinha me visto ontem: “Orlanda me dá um dinheiro”.
A frase que fazia a Neném ficar louca era: Tarrafa você vai morrer!
Ela então procurava pedras ao redor e quando não achava levantava a saia e mostrava a bunda nua e tudo mais.
Agora é real, Cansanção está mais triste para mim, a Neném morreu.
MARIAZINHA (Maria do Izalto):
Era professora leiga, como eram chamadas as professoras que não tinham formação pedagógica, mas eram responsáveis pela alfabetização das crianças.
Apaixonou-se perdidamente por alguém que a desprezou, era muito frágil de corpo e alma, e foi tão consumida pelo amor não correspondido que enlouqueceu… enlouqueceu ao ponto de sair pelada pelas ruas, do jeitinho como nasceu, sem nenhuma consciência da nudez … Todos tinham por ela uma compaixão; penso que ninguém a molestava, ninguém a conduzia para casa, olhavam de longe como se fosse uma boneca em movimento, aquela imagem branca como cera, cabelos lisos caindo pelos ombros, silenciosa como uma estátua, o olhar perdido, era como se não enxergasse ao redor, nunca mais suas mãos delicadas produziram lindas flores de crepom, nem cortinas reutilizando embalagens de plástico.
Só a vi de longe, e era assim que eu a via, uma alma vagando em corpo silencioso.
OTAVIANO DAS CAPOEIRAS,
Violento e assustador, louco de lua, quando “atacado” pela loucura, perambulava pelas ruas, falava sozinho, dava risadas e sentava nas calçadas, era forte como um touro, ninguém se arriscava a passar por perto.
Na mesma época do Otaviano, andava pelas ruas o TITA, este se encostava na parede das lojas de esquina, frente às praças ou se sentava nas calçadas, parecia estar esperando alguém, e estava, esperava por Otaviano, que certamente surgiria a qualquer momento, era como se tivessem marcado encontro e um já ia na direção do outro, como dois cachorros raivosos se enfrentando, entravam em luta livre, o povo assistia, eles só paravam quando o Tita não aguentava e dava um jeito de cair fora.
Otaviano, tinha períodos de lucidez, e nestes períodos voltava pras Capoeiras, na zona rural, onde trabalhava duro, puxando enxada na roça, plantando e colhendo para ajudar a família.
Os doidos são pessoas de Deus, e são inocentes desprotegidos. Violentos como o Otaviano, com traços fortes de esquizofrenia, certamente precisam de tratamento especializado que na época não existia, eles recebiam choque elétrico. O Otaviano sabia disto, pois já estivera em um manicômio, onde recebeu choques elétricos, como método de tratamento, por isso quando preso na Cadeia de Cansanção, aguardando transferência para retornar ao manicômio e sem ter a quem recorrer, rezou o Credo em voz alta, e reuniu forças capazes de quebrar portas e arrebentar grades para escapar.
A ele perguntavam:
– “Otaviano, qual o remédio de doido?” Ao que ele respondia prontamente:
– “Doido e meio! ”,
-“E o remédio para doido e meio? ”
– “Cacete ! ”
Dizem que morreu em um incêndio, na própria casa, provocado por ele mesmo.
O TITA,
Era forte, vivia pelas esquinas, tinha preferência, pela esquina da loja de seu João Andrade e pela esquina da rua Senhora Santana com a praça Domingos Manoel de Jesus. Entre Tita e Otaviano, doido da mesma geração, havia uma rivalidade, eram como dois animais brigando. Quando estava atacado do juízo, tirava a camisa, ficando somente com a calça meia coronha, e assim passava o dia e a noite repetindo, até ficar rouco:
“muié quando enveiesse, os peito desce,
a barriga cresce, a bunda chocha, o …. padece”.
O CARIA,
O Caria era o doido intelectual, tinha uma noiva fictícia chamada Maria Araújo, que segundo sua imaginação, morava em Salvador, na Ladeira do Peru.
Ele tinha sempre uma revista ou um jornal velho nas mãos, também andava com ele debaixo do braço e quando sentado pelas calçadas, fazia trejeitos de quem estava lendo, embora as letras e fotos estivessem quase sempre de “cabeça para baixo”, o que para ele não fazia a mínima diferença, visto que não sabia ler, nem tinha concentração para olhar uma foto.
Quando alguém lhe perguntava:
– Caria, o que você está lendo? –
Ele respondia:
“‘ – é pra preparar os convidado, pra ir pro meu casamento, na Bahia, (Salvador), você e sua famia vão, Cota e os fio tudo também vão, os fio vão de caminhão, eu vou na boléa, João Queio e Cota vão de animale, se não quiser vão de a pé “.
Este texto é uma singela homenagem aos meus doidos de Cansanção, é para que continuem vivos nos nossos corações.
Fonte, Texto e Revisão: Iolanda Damasceno Dreschers – Fotos: Iolanda Damasceno Dreschers – Arquivo pessoal
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade
1 comentário
O artigo de Iolanda Damasceno Dreschers é uma comovente e sensível crônica sobre personagens reais que viveram à margem da compreensão e da assistência médica no sertão baiano nas décadas de 1960 a 1980. Com olhar humano e empático, a autora nos conduz por lembranças que revelam como, naquele tempo e naquela região esquecida, pessoas portadoras de distúrbios psiquiátricos ou neurodivergências eram simplesmente rotuladas como “loucos” — seres exóticos ou temidos, mas muitas vezes invisibilizados por uma sociedade desprovida de recursos médicos, políticas públicas e conhecimento técnico para lidar com tais condições.
É louvável a sensibilidade de Iolanda em reconhecer, ainda que décadas depois, que muitos desses “doidos de estimação” provavelmente sofriam de patologias específicas, como esquizofrenia, surtos psicóticos ou até mesmo condições hoje diagnosticadas com maior precisão, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Em tempos em que não havia sequer atendimento básico de saúde mental, Iolanda e sua família ofereciam algo que ainda hoje é essencial: acolhimento, dignidade e respeito.
Nos dias atuais, graças ao avanço da medicina, da psiquiatria e da neurociência, é possível identificar essas moléstias com mais precisão e, principalmente, oferecer tratamento adequado. A inclusão social também se tornou um valor fundamental, respaldada por legislações que garantem o direito de pessoas com deficiência — inclusive neurodivergentes — à convivência plena em sociedade. Muitos dos que seriam marginalizados ou internados no passado, hoje frequentam escolas, trabalham, se relacionam e participam ativamente da vida comunitária.
O texto de Iolanda é mais que uma memória afetiva: é um documento de valor histórico e social. Nele, a autora resgata com delicadeza e respeito a trajetória de pessoas que, à sua maneira, marcaram a vida de uma comunidade. Ao fazê-lo, contribui para que jamais se esqueça da importância do olhar atento, do cuidado com o outro e da necessidade de políticas públicas que garantam que ninguém mais seja tratado apenas como “doido”, mas sim como ser humano digno de atenção, diagnóstico e inclusão.