Na segunda-feira de Carnaval, 24 de fevereiro, em torno de 20 horas, a bióloga Rúbia Santana entrava em casa com as compras do supermercado quando recebeu uma mensagem pelo WhatsApp que transformaria sua vida e a do país inteiro. O laboratório de biologia molecular coordenado por ela, no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, havia recém-concluído o primeiro teste positivo para a Covid-19. Rúbia deixou as sacolas cair no chão e, rapidamente, ligou para uma colega, em busca de confirmação da notícia. “Do ponto de vista profissional, de cuidados com a saúde, a sensação de ter trabalhado com o caso pioneiro é indescritível”, diz. Dois dias depois, o Ministério da Saúde anunciaria oficialmente a informação que Rúbia tivera em primeira mão. A partir dali, o Einstein se tornaria a principal referência do Brasil nos cuidados com a doença. Hoje, 90% do tempo de atividade dos cinco equipamentos de detecção de vírus e bactérias de amostras colhidas no hospital é destinado exclusivamente à nova cepa de coronavírus. Até 12 de março, o Einstein tinha confirmado 98 diagnósticos positivos. No dia 18, havia 45 pacientes internados com suspeita de ter o vírus – desse contingente, 21 eram ocorrências confirmadas; sete estavam em estado grave, na UTI. Ao longo de dois dias, a reportagem de VEJA foi autorizada a entrar no coração da instituição, de modo a acompanhar o cotidiano heroico dos profissionais de saúde, como Rúbia, que zelam pelos pacientes com a Covid-19.
São mulheres e homens, alguns na linha de frente, em contato direto com os enfermos, outros em laboratórios, mas todos imbuídos de uma missão: salvar vidas e proteger os doentes, a partir de protocolos seguidos fielmente. “A gente só sabe se está preparado na hora em que a guerra começa”, diz Sidney Klajner, presidente do Einstein. A história oficial do coronavírus no Brasil teve início um pouco antes de piscar no smartphone de Rúbia, graças à intuição do infectologista Fernando Gatti. Ele desconfiou que estaria diante do primeiro caso de infecção no país quando soube da chegada ao pronto-socorro de um senhor de 61 anos que desembarcara da região norte da Itália com sintomas de uma gripe comum: febre baixa e alguma dificuldade para respirar. Mas, eis o momento de “eureca”, o cidadão tinha estado na Lombardia, que acumulava, então, 173 casos e seis mortes pelo vírus. Submetido ao teste, ele foi imediatamente isolado (procedimento, ressalve-se, desrespeitado pelos italianos quando se observaram os primeiros episódios, antes da disseminação descontrolada).
Gatti liberou o paciente número 1 do Brasil com a condição de quarentena doméstica, ao longo de duas semanas. O médico trocava mensagens remotamente com o doente ao menos quatro vezes ao dia. “Eu me preocupei muito mais com o estado emocional dele diante das fake news do que com os sintomas em si da doença, que rapidamente ficaram controlados”, afirma. Houve críticas, nem tão veladas assim, ao fato de o enfermo ter sido dispensado com ligeireza. “Não podia abrir exceções, mesmo sendo o primeiro paciente”, defende-se o infectologista, hoje o médico número 1 do momento que vivemos. “É impossível internar todo mundo, e sabíamos que viria uma epidemia. Ele estava estável.”
Normalmente calmo, com ares de hotel cinco estrelas, o clima nos corredores do Einstein mudou radicalmente nos últimos dias. A tranquilidade deu lugar a agitação e rictos de nervosismo. Há controle e certezas nas decisões — mas há também rostos suados e o bater de saltos altos de médicas e enfermeiras impecáveis no vestir. Os cumprimentos, como manda o figurino, são feitos por rápidos toques de cotovelo. Passa-se álcool em gel nas mãos compulsivamente. Nos últimos quinze dias, as regras de segurança e conduta começaram a mudar freneticamente. Desde o dia 16, os talheres e copos dos refinados restaurantes são de plástico. E mesmo ali, onde a doença atinge um grau de perigo, algumas pessoas teimam em não entender a gravidade da situação. Alguns parentes de pacientes que vão ao local para visitá-los reclamam da dificuldade de cortar uma picanha e do incômodo de tomar vinho bom em recipiente insosso, mas a substituição não é feita.
Liderada pelo diretor-superintendente Miguel Cendoroglo, a linha de frente formada por homens e mulheres de branco contra o coronavírus chega hoje a quarenta pessoas. Profissionais de outras especialidades foram convocados para atender clinicamente os pacientes com sintomas de coronavírus. A enfermeira Janaina Felix, que há vinte anos trabalha no setor de gastroenterologia, agora só cuida dos infectados. No dia 18, na ala em que estava, havia doze casos positivos. Com um pouco mais de 1 metro e meio de altura, Janaina é um soldado. Ao longo da entrevista, chamou a atenção de um funcionário porque a caixa com máscaras que fica na entrada do corredor estava vazia. Tirou dúvidas de colegas sobre higienização. Não deixou os repórteres de VEJA entrar no setor sem máscara, mesmo a mais de 2 metros de distância dos possíveis doentes. Preocupou-se com o equipamento e celulares que tinham encostado no chão e os desinfetou, um a um. “Eu me sinto mais segura aqui do que lá fora”, diz ela, que intensificou a atenção com a filha de 2 anos e meio. “Quando chego do trabalho, deixo o sapato fora de casa, a roupa na máquina de lavar, separada das da minha filha, e vou direto para o banho.” São cuidados fundamentais. Como em toda guerra há baixas, até o dia 17 havia quatro médicos infectados e doze com suspeita da doença no Einstein. Mas o zelo com os profissionais cresceu. Quem apresentar febre e algum problema respiratório terá de fazer uma consulta por telemedicina. Realizado o teste para coronavírus, a pessoa ficará três dias afastada, o tempo médio do resultado dos exames. Caso dê negativo, mas os sintomas permanecerem, ela terá de ficar em casa por mais uma semana. Se der positivo, serão catorze dias fora do hospital.
Assim como nas grandes cidades, algumas medidas restritivas vêm sendo impostas à circulação de pessoas no Einstein. Desde o dia 17, as visitas foram extremamente restringidas, para proteger doentes e profissionais. Pacientes infectados não podem mais recebê-las. Aos outros doentes é permitido apenas um acompanhante. As decisões são tomadas em reuniões diárias chamadas de “grupo de gestão de crise”, uma espécie de sala de guerra. Participam representantes da limpeza, médicos e enfermeiros, e as ideias ali fervilham como se fossem o gabinete de emergência de Winston Churchill no subsolo londrino durante a II Guerra Mundial. Independentemente da hierarquia, todos levam suas dúvidas, experiências de suas equipes e pedidos. No encontro do dia 16, um dos participantes pediu que o material do avental fosse feito com um tecido mais resistente, para que a blindagem contra o vírus ficasse mais eficiente. Mas o clima aparentemente caótico e tenso é atalho para decisões firmes, modernas – incapazes, contudo, de frear o ritmo da doença caso a população não colabore.
Coragem, senso de dever e dedicação fazem parte da batalha enfrentada por esses profissionais no combate à doença. De fato, são heróis da vida real que deixaram o medo de lado e mudaram radicalmente sua rotina. Há um mês, o infectologista Moacyr Silva Junior trabalha de domingo a domingo. Emagreceu 5 quilos e interrompeu todas as atividades paralelas. “Nunca trabalhei tanto na minha vida e sei que tudo está apenas começando”, afirma, em um tom doce. Numa manhã de atendimento, um paciente, em estado grave, entubado na UTI, teve uma queda drástica de pressão. Com uma calma que chega até a produzir nervosismo em quem o vê em ação, Silva Junior estabilizou as taxas do doente. O médico clínico plantonista Marcelo Bettega, que recebe centenas de mensagens por dia pelo WhatsApp depois dos casos de coronavírus, também passou a viver momentos de tensão. “É estressante lidar com o desespero dos pacientes, há muita desinformação”, diz. Um dos infectados que atendeu recentemente tinha 23 anos, largou o carro com a porta aberta na frente do hospital, chegou e apertou o botão vermelho do pronto atendimento, destinado a situações como infarto e derrame. “Ele tinha chegado da Itália e estava em pânico de estar infectado”, conta. Silva Junior e Bettega, cada qual a seu modo, têm a mesma expressão de extremo cansaço no olhar.
O empenho por ali tem sido de cima a baixo. Desde janeiro, Claudia Laselva, diretora da área operacional e da enfermagem, fica dezesseis horas por dia no hospital. “Meu marido me pergunta por que não passo logo a morar aqui”, conta. Ela é a coordenadora de grande parte das mudanças implementadas para conter a Covid-19. De uma sala com telas gigantes, dirige uma equipe que monitora o trabalho dos médicos nas salas de cirurgia. “O que mais estressa não é o volume de trabalho, mas a preocupação com o que vem pela frente e a necessidade de estarmos preparados para isso”, diz. “A perspectiva de faltar um único leito para o paciente grave já é horrível.” Nesta semana, uma amostra do que pode vir por aí: ocorreram as primeiras mortes pela doença no Brasil – até o meio-dia de 19 de março, eram sete, cinco delas de internados na UTI do Hospital Sancta Maggiore, em São Paulo. O vírus mata e precisa ser combatido. Não apenas pelos valentes que usam branco nos hospitais – mas por todos os brasileiros. Fique em casa.
Fonte: https://veja.abril.com.br – Publicado em de 25 de março de 2020, edição nº 2679
Blog do Florisvaldo – Informação Com Imparcialidade – 20/03/2020